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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Categorização e representação da Ciência no Brasil



A representação da ciência é dividida em um esquema hierárquico de grandes áreas, áreas, subáreas etc. Outro dia, ao lançar em meu Lattes uma produção que não cabia em nenhuma das arbitrárias subdivisões, percebi a impossibilidade de referenciar uma discussão ligada à Ciência em si. O Lattes não contempla a possibilidade de uma produção que abranja a Ciência como um todo e que não seja focada em uma área específica. É como se cada pesquisa fosse voltada para o próprio umbigo. Como se um furacão só pudesse ser objeto da meteorologia e não da psicologia (o medo que ele pode causar), da agronomia (suas implicações para a colheita) etc. Esse exemplo é do Eduardo Tomanik e está no excelente livro sobre metodologia "O olhar no espelho". 

Hoje recebi uma piada boba que traduz bem esse tipo de representação do conhecimento norteador da plataforma Lattes:
CIÊNCIA MODERNA:  
1. Se mexer, pertence à Biologia.
2. Se feder, pertence à Química.
3. Se não funciona, pertence à Física.
4. Se ninguém entende, é Matemática.
5. Se não faz sentido, é Economia ou Psicologia.
6. Se mexer, feder, não funcionar, ninguém entender e não fizer sentido, é Informática.
As categorias são tão bem definidas que talvez fosse o caso de sugerir um novo campo para o Lattes, no qual, para cada produção, haveria um formulário para ser clicado com as alternativas "mexe", "fede", "ninguém entende" etc.  O sistema poderia ser aprimorado de tal modo que tais cliques já indicassem automaticamente as áreas e subáreas do conhecimento, poupando-nos dos 4 a 5 minutos que gastamos hoje para apontar tais dados em cada área arrolada. Isso projeta, para um pesquisador com 30 produtos anuais, uma média de 450 minutos por ano, gastos apenas para indicar as subáreas de sua produção científica. É muito tempo para nada.

Apesar da evidente (e tola) provocação que faço aos meus alunos oriundos da TI, a questão é bem mais aguda do pode imaginar um iniciante em pesquisa científica. As métricas de produtividade pelas quais a produção científica nacional é avaliada são totalmente baseadas em esquemas artificiais que, ao invés de tentar representar a realidade, tentam fazer, paradoxalmente, com que a realidade se adeqüe à sua própria representação. Isto é: os parâmetros que tentam representar o que nós cientistas fazemos não condizem com as nossas atividades. Ao contrário, nós cientistas é que temos que nos adequar àquilo que foi arbitrariamente pré-definido pelas métricas da CAPES, embasadas nas categorias do Lattes. 

Todos os pesquisadores do Brasil gastam horas e horas, que deveriam ser dedicadas à pesquisa, preenchendo a plataforma Lattes. Os problemas conceituais de representação mencionados, além de um sistema pouco amigável e muito lento, induziram à criação de um novo verbo, que (espero) deverá brevemente ser incorporado pelo Dicionário Houaiss: 
  • Lattesjar: palpitar sofrido, longo e agoniante, resultante do processo de preenchimento da plataforma Lattes.
 Conjugação:
  • Eu (cientista) lattesjo. 
  • Tu (estudante) tens que lattesjar; 
  • Ele  (gestor da CAPES) não sabe o que é lattesjar;
  • Nós (trouxas) lattesjamos;
  • Vós (candidatos a trouxas) tendes que lattesjar ainda mais;
  • Eles (definidores da políticas de C&T brasileira) defendem o lattesjar porque não sabem o que é Ciência.

Um interessante texto do editor da Clinics, um conceituado periódico nacional, disponível na Scielo, aprofunda a questão das métricas da CAPES (acesse o texto aqui). O blog Ciência Brasil fez irônico (e sério) post sobre a questão à época da publicação pela Clinics (acesse o post aqui).

Uma conceituada pesquisadora da USP, cujo nome é referência unânime na Arquivilogia tomou uma atitude inédita, corajosa e radical: apagou toda a sua produção científica do Lattes, mantendo apenas os dados mínimos de identificação e titulação (já que algumas universidades - como a UnB-  exigem uma cópia do Lattes para  atestar a titulação para que um eventual membro externo possa participar de bancas, ignorando que quem atesta a titulação é um diploma, não o banco de dados que tem a representação dele).  Acesse aqui esse CV e depois googleie o nome da professora (entre aspas) para ver os resultados.

5 comentários:

  1. O lattes é uma plataforma muuuiiiito chata e cansativa. Quem criou provavelmente não usa, não produz nada e adora fazer com que as pessoas percam tempo.

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  2. O mais irritante é que não há um tutorial, ou aquelas simples caixas de diálogo que diga: aqui cabe isso e isso... Temos que deduzir, em relação a certos documentos, onde descrever, e o quê! Penso que há uma gritante necessidade de pesquisa e PROPOSTA para tornar o Lattes mais amigável e interativo! Estudos de Arquitetura da Informação, provavelmente, responderiam por isso!
    A postagem, para além do lúdico, é uma grande e pertinente crítica! Parabéns!

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  3. Achei bem interessante o boicote da prof. Ana Maria, gostaria de poder fazer o mesmo, mas ainda sou peixe pequeno, então tenho que me submeter, mas eu tenho uma proposta, André: à semelhança do projeto que obrigaria os políticos a manterem seus filhos em escolas públicas, todos os desenvolvedores, gestores e defensores do Lattes deveriam manter um currículo atualizado trimestralmente na plataforma, só assim veriam os bugs de sistema e de epistemologia.

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    Respostas
    1. O espírito de sua proposta é válido, mas acho que na prática, não funcionaria.

      Outro dia recebi queixas de que a consolidação dos dados de meu Lattes pela pós-graduação para os sistemas da Capes está dando muito trabalho porque eu produzi demais!!!

      O burocrata não produtivo vai ter umas 5 produções anuais para atualizar no Lattes (01 artigo e olhe lá, 01 banca, uma ou outra comissão e alguma coisinha extra), e pouco entenderá dos problemas. Ele não tem que orientar, pesquisar, organizar eventos, dar aulas, escrever, ir a eventos etc. Os um pouco mais dedicados também à pesquisa, obviamente, já tem alguém encarregado de fazer isso (secretário/a, estagiário/a, aspone etc.).

      É a lógica que impera no Brasil: quanto mais se faz, mais problemas você tem; quanto menos se faz, mais sossegada é sua vida, pela mesma remuneração.

      Outro dia, para atualizar minha produção de julho/2012 até março/2013 eu fiquei das 14:30 hs de um dia até as 9:30 da manhã do outro (apenas com uma breve pausa para ver o jogo do Corinthians durante o jantar). Lattesjar assim foi, realmente um dia de cão.

      Acho que a saída, com ou sem Lattes, seria ter um sistema realmente meritocrático que ostracizasse os medíocres da academia e valorizasse o trabalho dedicado de qualidade, mas isso é utópico neste país...

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