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sábado, 5 de abril de 2014

Tropeços na Redação Científica 1

Quando a questão não existe ou ninguém sabe qual é

M. C. Escher; Queda D´água, copiado de Gödel, Escher, Bach
O uso de gírias e de expressões peculiares é típico dos grupos sociais. Além de servirem como recursos para a comunicação, estas formas particulares de expressão servem também como elementos de identificação dos participantes do grupo. No mundo acadêmico isto também ocorre e quem já viveu algum tempo neste ambiente com certeza se lembrará de muitos exemplos de gírias compartilhadas até a exaustão pelos cientistas.

Aqui no Brasil já tivemos um período no qual, após a publicação de um texto do Maurício Tragtemberg sobre o tema, nenhum participante da academia se atrevia a construir uma frase qualquer sem abordar as relações entre o saber e o poder. Tivemos, também, as fases do ponto fulcral e do a nível de... (que virou até música).

Parece que a gíria da vez é a questão da...

Preste atenção e você verá que parecemos não ser mais capazes de discutir a política, a adolescência, a comunicação, o desejo... Estamos sempre falando, escrevendo e discutindo a questão de cada um daqueles temas.

Esta poderia ser apenas mais uma mania, um cacoete dos cientistas que, tal como as músicas temas das novelas da Globo, de tão repetidas, tornam-se maçantes, mas me parece que ela serve também para transmitir uma série de falsas impressões.

A primeira delas pode ser a impressão de falsa competência. Quando alguém cita, de passagem, algo como a questão da formação política, está agindo como se soubesse, com precisão e clareza, o que é a tal questão, quais os limites, os determinantes e as consequências da mesma. Será que sabe?

Além disso, se não detalhar aqueles elementos, nosso brilhante autor ou locutor estará transferindo para seus ouvintes a responsabilidade pelo conhecimento de todos eles. Assim, cria novas falsas impressões. Uma: a de que todo mundo sabe ou deveria saber qual é e em que consiste a tal questão. Outra, bem pior: a de que ela existe e é ou pode ser conhecida.

Será que a complexidade que normalmente envolve acontecimentos ou processos importantes pode ser reduzida e expressa em uma questão?

Qual é, por exemplo, a questão da Educação no País? Quais são as do Ensino Superior, da participação política, da economia de base, dos direitos humanos?

Para piorar: normalmente, a expressão a questão da ou do significa exatamente nada. Faça um exercício. Tome a frase: “A questão da Abolição, no Brasil, não pode ser compreendida plenamente se não levarmos em conta a questão da produção agrícola nacional, a questão dos interesses mercantis ingleses e especialmente a questão do frágil equilíbrio político da Monarquia”. Agora experimente retirar da frase as expressões a questão da ou do e substituí-las pelos artigos a ou o equivalentes. Aquelas expressões fizeram alguma falta?

Na maioria das vezes o uso daquelas expressões é inútil. Elas representam apenas uma mania chata e, eventualmente, a manifestação de alguma petulância.

Para que precisamos delas, então?

Como nos livrarmos deste vício? Eis uma boa questão.

De qualquer forma, acho que está na hora de prestarmos mais atenção nas questões envolvidas nesta questão da questão, porque ela está se tornando excessivamente repetitiva.

4 comentários:

  1. Adorei esse Blog! É super útil pra nós, pesquisadores iniciantes. Quanto à participação do Tomanik, sem comentários! Seus textos trarão luz para nos guiar nos caminhos da redação científica. Sou fã do Tomanik: profissional com tanta bagagem, simples, bem humorado e, principalmente, super disposto a ensinar! Abraços e parabéns pelo Blog!

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  2. Realmente, vi este mesmo assunto ser discutido em uma banca de doutorado.
    Obrigada, Tomanik, por compartilhar dos seus saberes conosco aqui no blog, de uma forma suave e com ideias bem articuladas.

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  3. Taí uma ótima "questão"! Muito bom! :)

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