Ambiente virtual de debate metodológico em Ciência da Informação, pesquisa científica e produção social de conhecimento

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

E-books: e a pesquisa como é que fica?

Copiado de Susanbca
Não há pesquisador que discorde acerca da importância das fontes de informação para a pequisa científica. Por excelência, tais fontes costumavam ser de natureza bibliográfica e gerenciadas (isto é: armazenadas, classificadas, organizadas acessadas etc.) em uma instituição construída para tais finalidades. Os OPACs, ou catálogos on-line, paulatinamente, foram modificando as atividades dos elementos humanos da relação pesquisador-acervo. O contato direto entre cientista e bibliotecário foi, pouco-a-pouco, sendo intermediada, e até mesmo substituída pelas TICs. O fenômeno agora começa a modificar também o ponto final do acesso do pesquisador; não mais o livro, porém o e-book; não mais a biblioteca, porém repositórios e catálogos de e-books. O profissional da informação, elemento primordial na catalogação (física ou on-line) também começa a deixar de ser essencial para a organização do acesso. Folksonomia, interação 3.0, wikis, social bookmarking etc. são alguns exemplos colaborativos nos quais os próprios interessados finais passam a organizar (ao menos em parte) a informação o modo de recuperação da mesma e, muitas vezes, o próprio acesso. Obviamente não se trata de decretar a extinção de um sistema complexo de guarda e disseminação de informação, já que há muitas coisas que ainda dependem exclusivamente do livro físico, porém de tentar entender a sua inexorável transformação em algo muito mais dinâmico. Veja aqui, post de Rodney Eloy, bibliotecário, sobre o tema.

As práticas bibliográficas da pesquisa científica também modificam-se bastante. Recordo-me do meu tempo de estudante de graduação, no curso de História da USP, no qual boas bibliografias sobre determinados temas eram "disputadas a tapa", para a elaboração dos trabalhos finais. Havia professores que marcavam entrevistas para analisar o levantamento bibliográfico que havíamos feito para selecionar materiais a serem utilizados no trabalho final. A realização de um levantamento desses levava várias sessões de algumas horas em diferentes bibliotecas para: a) pesquisar no catálogo e selecionar obras de interesse potencial; b) solicitar a obra ao atendente (não tínhamos acesso direto); c) esperar 5, 10, 15 min. pela obra ou pela informação de que ela não estava disponível (emprestada, reservada ou, muito comum, extraviada); d) analisar brevemente a obra e conferir se ela estaria no rol de interesse da pesquisa. No frigir dos ovos, a consulta a um simples livro, apenas para analisar sua pertinência na pesquisa, poderia levar até 30mim. Não é por acaso que nessa época (anos 1980) proliferam trabalhos de base bibliográfica bastante similar. A profusão de fotocópias dos materiais objetivavam garantir o acesso àquela informação em uma segunda oportunidade, eliminado a via-Crúcis mencionada.

No mestrado aprendi a consultar dicionários terminológicos, revistas e resenhas para melhor delimitar o universo a ser pesquisado. Mas, em termos gerais, a sistemática era a mesma, porém menos sofrida. As transformações no sistema, aos poucos foram facilitando os passos indicados acima. Um melhor controle da catalogação, do acervo e do acesso, possibilitados por antigas TICs passou permitir o acesso direto. Um sistema mais eficiente reduziu a questão do extravio, além de permitir consolidar informações sobre a existência/disponibilidade da obra em outras unidades do mesmo sistema. De qualquer modo, como uma boa fonte de pesquisa precisa, geralmente, ser acessada várias vezes, habituei-me, então, a manter comigo a informação original na íntegra; seja por meio de fichamentos (há técnicas importantes para isso), compra dos livros em sebo, compra dos livros novos (quando não encontrados em sebos) e fotocópias (quando não encontrada a obra para compra). Tudo isso consumia um tempo de pesquisa considerável. Tempo que não era perdido, pois criava-se o hábito de buscar coisas diferentes e de cotejar autores, conceitos edições, traduções etc.

À época do doutorado os sistemas OPAC das bibliotecas da USP foram de alta utilidade, pois, somados ao uso de buscadores na web para arrolar autores e obras de potencial interesse, permitia otimizar as idas às bibliotecas, chegando lá com as anotações precisas da referência e do acesso das obras desejadas; quase um "pick and go". Gastava-se bem menos tempo para chegar à informação, porém perdia-se muito do processo de analisar e tomar contato com outras obras não tão diretamente ligadas ao foco da pesquisa. 

Hoje a pesquisa bibliográfica assume uma outra faceta, apesar de ainda ser pautada nos mesmos passos. Parece desnecessário arrolar como os e-books e o acesso direto às fontes de informação otimizam e facilitam o processo. Como há profusão de materiais disponíveis on-line, há uma tendência natural a desprezar, ou não consultar, aquilo que demandará um deslocamento físico a uma biblioteca. O antigo fichamento, no qual (se feito corretamente) poderia permitir a localização rápida de determinadas passagens na obra que estivessem relacionadas a determinados conceitos é substituído por buscadores de termos e por anotações virtuais à margem dos textos. O acesso automático às determinadas partes do texto vem acompanhado de uma evidente superficialidade na segunda leitura (ou ausência dela). Em nome do pragmatismo e da eficiência perde-se parte do processo de maturação da leitura do texto. Não lemos mais textos completos porém excertos eficientemente acessados e replicados. O antigo exercício da citação sempre era acompanhado por uma atividade de cópia, caractere a caractere, do texto original. Esse processo, inevitavelmente levava à reflexão do que estava sendo copiado e à busca de passagens sucintas de alto significado.  Hoje é cada vez mais comum o exercício do recorta-e-cola apenas para "encher linguiça", sem uma necessária reflexão. 

A automação do acesso aos textos científicos representa uma enorme (gigantesca mesmo) eficiência nas práticas de pesquisa dos migrantes digitais, mas, e essa me parece ser a grande questão de fundo dos dias atuais, quais os impactos que trará para os jovens pesquisadores, nativos digitais? Uma geração não habituada à reflexão crítica das fontes (para ela wikipaedia, sites de jornalismo, revistas têm o mesmo valor se propiciarem a resposta desejada), não-habituada à frustração de dedicar horas para uma fonte que se revela não adequada (o hábito de "googlar" e ir clicando nos primeiros retornos de busca e descartar imediatamente os que aparentam não ter serventia). Mencionado por Eloy, Umberto Eco, fascinado pelo i-Pad, que lhe poupou esforços de mula de não ter que carregar 20 livros, certamente sabe realizar a crítica interna e externa dos documentos, apregoada por Langlois e Seignobos em 1898, sem cair na armadilha da neutralidade positivista, mas será que os novos pesquisadores, que estarão sendo forjados no universo da informação sem suporte físico aparente saberá?

Em tempo: além de escavar em minha memória a obra "Introdução aos estudos históricos" de Langlois e Seignobos, paro o exemplo do parágrafo acima, recorri a cópia xerox que tenho dela (a última edição brasileira data de 1946). Será que o nativo digital que queira consultá-la, mesmo que só por curiosidade, irá encontrá-la na web (não achei nenhuma versão on-line em língua portuguesa)? Ou apenas matará a curiosidade por meio das inúmeras "explicações" sobre o método positivista, facilmente encontráveis em um simples "googlar". Está lançado o desafio! 

As bases metodológicas sobre a organização de fontes empíricas para a pesquisa em história estão lançadas naquela obra, de mais de um século. A heurística, caracterizada como a busca de documentos para a História, terá importantes desdobramentos nas demais áreas das humanidades e traz conceitos fundamentais que serão apropriados parcialmente pelas ciências sociais aplicadas. Quantos são os arquivistas formados hoje que passam a ter um visão meramente panorâmica e preconceituosa sobre o positivismo histórico (o tópico é recorrente nas ementas de "Introdução à História", disciplina típica da graduação em Arquivologia) que jamais leram na íntegra (mesmo que traduzidos) textos de Langlois, Seignobos, Comte, Ranke etc.? Quantos são os Bibliotecários que, assumidamente ou não, defendem um modelo de pesquisa positivista sem nunca terem ido além dos populares manuais de pesquisa, fartamente disponibilizados na web, sem terem tido o prazer da leitura crítica de um clássico? Sera que os novos cientistas da Informação irão apenas se contentar com manuais sobre práticas de pesquisa ou será que irão se dar ao trabalho de buscar também os clássicos, mesmo que virtualmente inatingíveis?

***********************
Complemento (25/2/2012 - 10:33 am): acabei de ler (aqui) no blog do colega Murilo Cunha, curiosa informação sobre detenta estadunidense que está processando a prisão pela suposta violação de seu direito de ter acesso a uma biblioteca jurídica, que lá foi substituída por um sistema de livros virtuais. A panaceia para muitos parece não ser tão universal, afinal de contas...

7 comentários:

  1. Pois é Mestre Ancona, nem tudo são flores no mundo mágico dos e-books. Parabéns pelo texto. Vou replicar no Pesquisa Mundi. O pensamento dos '2 Charles' ainda clamam!... "A análise minuciosa dos raciocínios, que leva da verificação material dos documentos ao conhecimento dos fatos, é uma das partes principias da Metodologia..."

    ResponderExcluir
  2. "2 Charles"? Gostei. Nunca tinha parado para pensar nos prenomes iguais...

    ResponderExcluir
  3. ótima reflexão. tecnologias sempre existiram, o problema é o ser humano. as pessoas querem tudo não mão, tudo pronto, sem teorias. sou aluno do 5º ano de biblio e prefiro estar anônimo o, pois tenho vergonha de tudo que "não" aprendi. a superficialidade é geral, a educação universitária é um grande supermercado recheada de cursos prontos em suas prateleiras, e ainda tem faculdades que o curso de biblio é de apenas 3 anos. estou há 5 cinco anos as pessoas não querem nada-com-nada, imagine 3? Bom, pra que pensar? se podemos googlar!

    ResponderExcluir
  4. Mais gasolina no incêndio: Hoje em dia a maioria dos autores produz textos eletrônicos e a maior parte das editoras mantém seus catálogos em repositórios digitais. Um mundo onde livros "nascem digitais" e leitores são "nativos digitais" é um mundo onde as bibliotecas de pesquisa não precisarão estocar quantidades imensas de trabalhos atuais em formato impresso. Impressão sob demanda e e-readers aprimorados serão suficientes para satisfazer necessidades imediatas. Sem dúvida esse mundo ainda parece distante, e não podemos reduzir nossas aquisições de monografias impressas até resolvermos uma lista considerável de problemas, especialmente o problema da preservação de textos digitais.

    Se e quando esse futuro for garantido, as bibliotecas de pesquisa terão como se concentrar naquilo que sempre foi seu forte: acervos especiais. No futuro, esses acervos poderão incluir tipos de materiais que ainda nem podemos imaginar. Serão, porém, mais ricos do que nunca em suas coleções de manuscritos e livros à moda antiga.

    ...

    Trecho do livro "A questão dos livros", de Robert Darnton (diretor da Biblioteca da Universidade de Harvard)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eloy,

      Por mais lenha na fogueira só com o chapéu alheio não vale. Parece que a situação seria, parodiando o único livro que conheço de Darnton (lá da minha época de historiador), o "Grande Massacre dos Livros".

      O ponto levantado parece destacar o profundo impacto que a tecnologia fará nas instituições de guarda e disseminação de fontes de pesquisa. Até onde tenho acompanhado o problema, existe um certo desconhecimento de que algumas coisas se modificaram, como, por exemplo, o próprio conceito de "fonte de informação".

      MODO PARÊNTESIS ON:
      Veja por exemplo o meu capítulo sobre a revolução documental e o despreparo dos arquivistas para entender o novo paradigma (meu livro de tipologia pode ser baixado daqui). Aliás sem os novos recursos a minha obra, já esgotada, jamais poderia chegar até você :)
      MODO PARÊNTESIS OFF

      Cada vez mais assistimos a uma "produção independente" das fontes de informação, menos amarradas às grandes coleções de livros e às bibliotecas (sem querer esvaziar o papel preponderante que elas têm na pesquisa científica).

      O capitalismo já entendeu que uma empresa não precisa estar fisicamente concentrada com sua produção, administração, estoque etc. A biblioteca (edifício) será cada vez menos necessária. A biblioteca (acervo) poderá estar em milhões de lugares ao mesmo tempo. A fonte de informação única, essa sim, como você menciona na citação, passará a ter altíssimo valor cultural, simbólico e monetário. Todo mundo conhece a Mona Lisa a Declaração da Independência estadunidense justamente porque são reproduzidas ad nauseum e isso somente amplifica a importância dos originais.

      Pobre taça Jules Rimet, desaparecida e talvez derretida por não ter atingindo um nível de reprodutibilidade suficientemente maduro a ponto de ser um original indesprezável (embora, e até mesmo por isso, muito mais roubável), mesmo assim podemos ter suas cópias digitais nos nossos tablets, i-phones, smartphones etc., muito mais leves do que os cerca de 4kgs da taça original...

      Excluir
  5. Anônimo,

    Acho que é uma questão de fundo subjacente sobre o que é a função principal do bibliotecário. Assim meio de fora (dou aulas na graduação em Arquivologia e vou lecionar para bibliotecários formados na pós), vejo que há um certo distanciamento (ou pelo menos falta de identificação) entre os profissionais em formação e as bibliotecas. Aliás, o discurso fácil da gestão da informação (que não precisa ter relação direta com livros) contribui.

    MODO PARENTESIS ON:
    Não quero generalizar e nem afirmar que todo mundo é assim, que não existem profissionais sérios que fazem as devidas mediações etc. etc. etc.
    MODO PARENTESIS OFF.

    Quando falamos de um médico de vocação, por exemplo, imaginamos uma criança que desde cedo se preocupava em socorrer os outros, ajudava os adultos próximos em situações de primeiros socorros e por aí vai. O que cada vez mais tenho visto é o ingresso de novos discentes cada vez mais incultos, o que cria um certo paradoxo: como formar um bom bibliotecário se ele nunca teve familiaridade (é isso o que me referia no exemplo do médico) com livros (ou com repositórios eletrônicos)? Familiaridade para conhecer, ler ser compromisso, fuçar no acervo etc. Até onde empiricamente conheço grandes bibliotecários costumam ter bibliotecas mais do que respeitáveis (nos mais diversos formatos e suportes).

    A questão não é tecnológica porém cultural: o desprezo atual pela erudição não é resultado dos e-books, porém o contrário. Só resta a esperança que essa ferramenta realmente revolucionária nos ajude (como cidadãos) a recuperar e aprimorar alguns bom antigos hábitos intelectuais. Do contrário, nós dois (e os demais leitores desse post) estaríamos perdendo nosso tempo, discutindo hábitos de leitura ao invés de estar socializando frivolidades com 3.214 "amigos" do Facebook... (Daqui a pouco vamos poder ter um milhão de amigos, como queria Roberto Carlos, mas quem terá um milhão de livros?)

    ResponderExcluir
  6. Eloy e Anônimo: acabei de complementar o texto com uma curiosa informação sobre processo legal envolvendo o direito de acesso a livros físicos.

    ResponderExcluir

Comente & argumente