Ambiente virtual de debate metodológico em Ciência da Informação, pesquisa científica e produção social de conhecimento

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A ciência nua e crua


O que separa a simples indagação, ingênua, de uma criança - sobre, por exemplo, por que existe dia e noite -, de uma verdadeira pesquisa "científica"? Uma listagem das diferenças contemplaria inumeráveis itens; dentre eles, alguns relacionados à institucionalização da produção do conhecimento e à legitimação institucional do modo de produzir tal conhecimento. É isso mesmo, trata-se de legitimação dos métodos e de instituições legitimadoras de tais métodos e resultados; esse últimos, nessa acepção, importam muito pouco. A boa instituição é aquela que produz excelentes indicadores de, por exemplo, artigos publicados. Quem os lê e qual a qualidade dos mesmos são questões irrelevantes. Tentando solucionar esse problema, outros indicadores foram criados: por exemplo, sobre o impacto e as citações feitas aos textos. Novamente, ao invés de trabalhar com os objetos concretos, continua-se a lidar com simulacros do real, espectros do conhecimento, a ponto de, como sói acontecer nas instituições e práticas científicas, a representação passar a ser mais importante do que seu referido, em um círculo vicioso de reificação. 

A grande questão parece não ser a prática da substituição em si, porém o discurso falacioso, vazio e hipócrita de pesquisadores supostamente comprometidos com a produção de conhecimento científico social e historicamente relevante, mas que, na verdade, apenas se comprometem com suas verbas, as estatísticas e a legitimação de tal cenário por seus pares. Aos poucos que se esforçam para não jogar esse jogo, mesmo estando à mesa, geralmente restam três caminhos: o conformismo alienado, a resistência em trincheiras e a desistência honrosa. Um simples olhar para alguns colegas e espaços administrativos de qualquer universidade é suficiente para caracterizar o primeiro tipo. As trincheiras isoladas, a cada dia, graças às redes sociais e às TIC, conseguem começar a incomodar, porém, ainda de modo muito limitado em termos de escala. Muitos dos posts difundidos neste blog podem servir como ilustração de algumas dessas práticas de resistência, seja por eles mesmos, seja por situações e textos neles abordados. 

O post de hoje visa trazer à baila o recente protesto/denúncia feito por um estudante de doutorado que, após se cansar das práticas hipócritas e autolegitimadoras da academia, optou por largar o curso, escrevendo uma carta de desistência que permite discutir muitos aspectos interessantes sobre o fazer ciência, além de desnudar, despudoradamente, alguns mantos intocáveis da "academia". Sua carta, que é quase um ensaio (mas não seria aceita para publicação por nenhuma revista "tradicional", por não ter uma seção "metodologia") traz, além da introdução, as seguintes partes: (i) "Academia: não é ciência é um empreendimento"; (ii) "Academia: “Trabalhe duro, jovem Padawan, para que algum dia você também possa dirigir seu próprio laboratório"; (iii) "Academia: a mentalidade da cabeça"; (iv) "Academia: onde a originalidade te destruirá"; (v) "Academia: o buraco negro do oportunismo na pesquisa"; (vi) "Academia: estatísticas a granel"; (vii) "Academia: a terra selvagem dos egos gigantes"; (viii) "Academia: o maior truque jamais realizado foi convencer o mundo sobre sua necessidade".

A discussão sobre se é mais fácil fugir do que lutar escapa ao âmbito desse blog. O interesse recai sobre o texto apresentado e sua argumentação e não sobre a decisão pessoal tomada. 

Aceda ao texto original aqui e lembre-se, durante a leitura, da escola de bruxaria tão bem retratada pela autora de Harry Potter, cuja inspiração é, em boa parte, oriunda dos muros da academia.

11 comentários:

  1. Es válido empezar el año con debates. ¿Qué tal este artículo que me envío un compañero docente? Se llama "Un vistazo a la academia" y tal vez muchos tengan algo para decir: http://www.lahojadearena.com/revista/2013/12/vistazo-la-academia-carta-de-renuncia-de-estudiante-de-posgrado/
    Esta es la carta de renuncia de un estudiante de Doctorado. Gene Bunin expresa sus reflexiones críticas con las que espera fomentar conciencia y responsabilidad.

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  2. Jejeje: está referido (y enlazado) al final de mi post.

    Gracias María por la contribución y, en especial, por la contribución inicial que fue la presentación que me hiciste del dicho texto.

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  3. Mais um post com olhar crítico para "dentro de casa". Parabéns pela coragem de promover esse tipo de discussão.
    O discurso e os argumentos do autor da carta (que, salvo engano, nao se identifica) não soam como novidade. Parecem ser uma compilação de várias reclamações que já escutei nos corredores das universidades que frequentei. Isso é bastante triste, pois reforça a ideia de que os aspectos negativos apresentados por ele sejam predominantes.
    Entretanto, quando ele questiona o futuro da "verdadeira ciência", o faz baseado em sua percepção dos profissionais com os quais trabalhou ou de quem ouviu falar. A minha opinião, baseada no mesmo tipo de percepção, é que a academia é um 'microcosmo' da sociedade moderna: Muita gente envolvida, muita gente ruim e muita gente boa. Muitos eventos ruins e bons acontecendo simultaneamente de forma caótica e complexa de maneira que não cabe o tipo de generalização proposta pelo (ex-)colega.
    A parte ruim chama a atenção. Sempre. Na academia e em qualquer faceta da sociedade. Os avanços relevantes realmente são absorvidos por poucos na maioria das vezes, mas um dia chegarão à sociedade em forma de políticas mais eficientes ou produtos úteis. A questão dos egos também existe em qualquer lugar. Dentre empresários, traficantes, políticos, líderes comunitários, atletas... Na academia não seria diferente.
    Em resumo, cada aspecto negativo pode ser expandido, sem muito esforço, para qualquer outro nicho de uma sociedade qualquer.
    Não deixa de ser um problema cuja solução não tenho ideia de qual seja, mas não enxergo como um problema da academia, nos moldes que o autor da carta sugere.

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    1. Rafael, grato pelo comentário.
      Concordo apenas em parte com você.
      É certo que quaisquer aspectos, positivos ou negativos, quando amplificados, podem levar à produção de quadros exagerados e pouco relevantes com a realidade. O fato de que que parte de tais problemas serem mais ou menos similares em outras esferas da sociedade (talvez com diferenças de escala) não pode nos eximir, como pesquisadores ligados à universidade pública de apontar tais distorções. Até aqui creio que nossas opiniões (implícitas ou explícitas), mais ou menos, coincidem.
      A parte em que concordo mais com Gene Buin (o autor da carta, identificado no documento original), a despeito de sua suposta "ingenuidade", é que a academia está perdendo o foco de seus objetivos maiores, e se tornando um conjunto de práticas auto-legitimadoras delas mesmas, sempre mediada por interesses pessoais e de grupos, somente para a perpetuação de status, cargos e acesso a verbas.
      No mundo corporativo a empresa que se valer dessa prática tem pouca sobrevida (talvez isso explique a alta mortandade das novas PMEs no Brasil). Imagino que a mesma lógica funcione com os traficantes. Com nossos políticos esse comportamento talvez explique muito da ineficiência de nosso Estado, em um país tão cheio de contrastes e com o maior custo mundial de representação per capita. Isso obviamente tem reflexos na campanha de nossos atletas não futebolistas, que somente alcançam resultados de monta à custa de esforços individuais (e familiares) hercúleos.
      É só ver os indicativos internacionais mais sérios para compreender como, no Brasil, o desenvolvimento científico vai ficando cada vez mais para trás, em relação a outros países emergentes (veja o caso da Coreia do Sul), a despeito de nossos relatórios recheados de dados maravilhosos.
      Há quase um ano um pesquisador reclamou que "nossa" associação, em nome de interesses não explicitados apresentava uma divulgação não equânime dos periódicos da CI (veja post aqui) e a única alteração feita foi uma modificação cosmética. Há quase um mês este blog mostrou (veja post aqui) que essa alteração estava longe de solucionar o problema e ainda mostrou que um programa de pós-graduação apresenta de modo não equânime os grupos de pesquisa que o compõe, dando destaque àqueles nos quais há o envolvimento da coordenadora; E NADA MUDOU, ainda; a página continua da mesma forma.
      A questão não é se a ANCIB ou o PPGCINF tratam a informação de modo equânime e democrático ou não. A questão é que isso passou a ser visto como "normal" e, o que é mais grave, representa apenas uma pontinha de um iceberg gigantesco, composto por verbas governamentais, com capacidade para perpetuar o círculo vicioso de nossa baixa eficácia científica. O problema anotado na carta é muito sério porque está ligado à parte estrutural de como estamos pensando, fazendo e institucionalizando ciência. É algo mais profundo do que ações administrativas simples que solucionariam a situação da divulgação de periódicos e grupos de pesquisas na web (isso seria facilmente resolvido pelo webmaster em, no máximo, meia hora).
      Do mesmo modo que não podemos achar "normal" a corrupção na política (devemos banir a ideia do "bom" político que rouba mas faz), o texto (e meu post também) convida a todos a não achar "normal" a ciência ser como a Escola de Hogwarts. Convida também, e essa é a parte mais importante, a pensar sobre possíveis alternativas. Como você mesmo disse "um problema cuja solução não tenho ideia de qual seja". Trata-se disso justamente: de começar a imaginar como mudar esse estado de coisas. Eu, como cientista e pesquisador, não consigo ficar passivamente "na minha", esperando que os avanços cheguem, paulatinamente, à sociedade... e você?
      O debate continua aberto...

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    2. Acabei de receber essa mensagem, que poderia, muito bem, integrar o debate:

      "Rui Barbosa há 100 anos escreveu: 'A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem: a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las'.' Parece ter sido escrito para o nosso tempo!"

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  4. Recebi, por e-mail, a seguinte contribuição da Profa. Dra. Maria Cristiane Barbosa Galvao, da USP, às 08:11hs de hoje:

    "(...) A produção da ciência caiu realmente em um caminho extremamente questionável de valorização da quantidade em detrimento da qualidade. Não faltam "pesquisadores" que publicam o mesmo artigo seguidas vezes mudando apenas o título. Às vezes, sem mesmo mudar o título. Só podemos esperar que mais reflexões como esta surjam neste ano que se inicia, sobretudo as que tratem da liberdade intelectual dos pesquisadores. (...)"

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  5. Recebi, por e-mail, a seguinte contribuição da Profa. Dra. Maria Leandra Bizello, da UNESP, às 14:34hs de ontem:

    "(...) achei tão boa a carta e a oportunidade que compartilhei no Facebook (...)"

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  6. No século XIX Frederic Nietzsche já alertava sobre a obra da ciência: uma cadeia de produção de alienados sociais, se auto bastando a si mesma. Pode-se apreender um pouco mais sobre esse pensamento na biografia do filósofo construída por Rudiger Safranski.

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    1. Apesar de ser um conceito de ciência "ligeiramente" distinto, a referência é muito pertinente e muito benvinda...

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  7. Queridos, acabei de me graduar e, claro, minha opinião não deve ser das mais importantes no mundo acadêmico/científico. Ainda assim, com pouca experiência, acho que não precisamos ir muito longe para identificar esses problemas na academia: eu nunca escondi minha vontade de me graduar, fazer mestrado, doutorado e continuar inserida no mundo acadêmico. No finalzinho da graduação, tentei com todas as ferramentas possíveis adentrar aos pouquinhos no Programa de Pós Graduação em CI, como aluna especial, somente para cursar uma matéria. Como graduanda, inexperiente, senti muitas dificuldades no processo. Por diversas vezes a impressão que me dava era de que o Programa não estava lá para acolher e sim para repelir. Informações desencontradas, má vontade de funcionários, dificuldade em encontrar professores, falta de informação quanto à prazos e procedimentos, entre outros problemas foi o que eu encontrei. Acho que deveriam existir iniciativas fortes no sentido de levar a maior quantidade possível de estudantes que estão para se formar ou recém-formados para dentro dos programas. É um mundo tão novo, tão perturbador, cheio de facetas e desafios... se não houver recepção como eu não tive, os alunos vão sair correndo pra nunca mais voltar. Felizmente eu não desisti e consegui cursar a matéria mas fico me perguntando quantas pessoas deixam de continuar seus estudos vão procurar outros horizontes por encontrar esse tipo de barreira. Eu penso que estuda quem quer, estuda quem ama e que perfil científico a gente faz com o tempo e com força de vontade. Eu gostaria de ter mais oportunidades dentro da minha universidade.

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    1. Serena,

      justamente por você estar começando (ou tentando começar) a trabalhar institucionalmente com pesquisa sua opinião é uma das mais valiosas. Conhece o ditado que diz que cachorro velho não aprende truque novo? Pois é... a minha opinião, aqui é uma das menos importantes, já que a cada dia minha capacidade de aprender novas coisas vai diminuindo.

      A parte ruim das situações aludidas acima (inclusive por você) é, em certa medida, algo intrínseco à própria concepção de pesquisa e ciência; porém, é também, culpa de gente que um dia esteve cheia de boas intenções (assim como você) e hoje tem medo do inexorável ciclo da vida e defende com unhas e dentes a posição alcançada (espero que daqui a 30 anos a Profa. Dr. Serena lembre-se do "humilde" comentário feito neste blog...)

      Tem uma piada de um cara que começa a trabalhar em uma estrada de ferro para substituir um antigo trabalhador que iria se aposentar no dia seguinte. O serviço consistia em bater com uma marreta nas rodas do trem, toda vez que ele parasse na estação. Após uns 3 trens o jovem trabalhador indaga o porquê de tal atividade e o que eles tinham que observar com as batidas. O antigo funcionário responde que se ele, que fazia isso há 30 anos, ainda não sabia, como é que um fedelho esperava aprender isso logo no primeiro dias de trabalho!

      A academia é assim como a piada. Já houve normas na UnB de que alguém só poderia ser professor efetivo da pós depois de ter defendido o doutorado a não sei quantos anos; ou seja, ao invés de aproveitar o pique e a energia de quem acabou de se titular, deveria se esperar que a pessoa se acomodasse e não mais tivesse impulsos transformadores.

      A situação que você descreve é muito similar ao não se buscar incentivar que recém graduados (ou alunos em vias de se graduarem) já comecem a se dedicar à pesquisa científica. No PPGCINF eu sempre estimulei o ingresso de alunos especiais nas disciplinas (no caso de minhas duas orientandas de IC isso foi uma exigência), porém sempre enfrentei muitos obstáculos com isso; passando por críticas abertas, caras feias, comentários não explícitos e até mesmo sumiços misteriosos de documentos dos alunos (que poderias inviabilizar a formalização dos créditos).

      Minha experiencia me diz que é muito mais fácil trabalhar com pesquisadores jovens do que transformar velhos em jovens pesquisadores. Porém é, ao mesmo tempo muito mais difícil, porque são questionadores e críticos.

      O Brasil hoje sofre de um problema grave que é a baixa formação de novos pesquisadores, a despeito de números crescentes de titulações de mestrado e doutorado. Esse aparente paradoxo mostra que temos tratado a pós-graduação como capacitação técnica e não como pesquisa científica. E essa só é possível com criatividade, imaginação e ousadia, que são características "a-t-e-r-r-o-r-i-z-a-n-t-e-s" para os velhos cães.

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