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domingo, 12 de maio de 2013

Em memória de Helenice Rodrigues da Silva

Uma das características da diplomática é o estudo dos procedimentos formulares típicos de determinados documentos, que incluem bem saber qual é o tipo, a ordem, a disposição e o comportamento da informação. Esse obituário, de saída, será diplomaticamente imperfeito. Nada sei das primeiras fases da vida de Helenice. Sei apenas que era mineira e isso transparecia em sua doçura e eterna simpatia. O gosto por boas e agradáveis conversas de fim de tarde, absolutamente descomprometidas ‑ sempre acompanhadas por suco, chá ou café e, obviamente, alguma coisa doce, como um bolo ou um pão ‑ revelavam, como manifestações fenotípicas, sua mineiridade... Tais gostos caíram como um luva, imagino, quando foi viver na França, onde trabalhou com vários intelectuais destacados, dentre os quais o mais emblemático para mim: Michel de Certeau. Com exceção de um ou outro comentário, um ou outro episódio por ela contado em algum chá da tarde, muito pouco sei sobre sua vida na França e os motivos que a fizeram voltar ao Brasil.

Conheci Helenice quando regressou ao Brasil, depois de mais de duas décadas, e tentava encontrar seu espaço profissional no país. Saiu da França como pesquisadora associada do CNRS e passou uma temporada no Brasil como professora visitante em diversas universidades, entre elas Unicamp, UNESP e USP. Nesta última, tive o privilegio de ser ouvinte em um curso sobre história intelectual, por ela ministrado em 1997. Um dos desdobramentos práticos desse contato foi a criação de um Grupo de Trabalho, junto ao simpósio Anpuh (Belo Horizonte, 1997), sobre o pensamento relacional em Cassirer, Panofsky e Bourdieu. As reflexões nesse grupo, antes e depois da Anpuh, me levaram a publicar um artigo cujas bases conceituais vieram a constituir a linha teórica dorsal de minha tese de doutorado.

Aprendi com Helenice duas coisas fundamentais para a formação e a prática de qualquer pesquisador: a primeira é que conhecer a história do pensamento filosófico e das escolas é algo vital para saber onde se pisa e com quais autores e conceitos se está lidando. A segunda é que as bases teóricas devem ser uniformes, isto é, referem-se a uma dada percepção de um objeto e, portanto, devem trabalhar com autores complementários; ou seja, há autores que não devem ser misturados, ainda que todos tenham abordagens importantes e úteis para a compreensão de um dado problema. Quando compreendi isso, pude continuar a me aprofundar na combinação Panofsky-Gombrich, para melhor estudar fenômenos relacionados à imagem (porta de entrada para meu objeto de pesquisa: os documentos fotográficos), deixando de lado, sem arrependimentos, os instigantes textos de Sartre, Gilbert Durand, Merleau-Ponty (e outros) sobre imagem e imaginário.

Pouco tempo depois, me contou que havia sido aprovada em um concurso para a federal do Paraná, onde vivia às turras com a “burrocracia” universitária brasileira. Enfrentou problemas para que os títulos obtidos na França (que haviam sido aceitos para efeitos de aprovação), também fossem considerados para sua alocação na carreira. Sempre tentou viver em Curitiba como se estivesse em uma cidade européia. É verdade que o clima frio, somado a alguns espaços culturais da cidade, pode ajudar nessa ilusão, se não houver muita exigência quanto à similaridade. 

Sempre mantivemos, mesmo à distância, algum tipo de contato. Em 2001 pude, novamente, considerar-me privilegiado, por tê-la, em minha banca de doutoramento. Em 2003, participei da banca de mestrado de uma orientanda de Helenice, em Curitiba. Na véspera, fomos jantar em um restaurante muito agradável, razoavelmente vazio, mas para o qual ela, obviamente, como boa “francesa”, já havia feito uma reserva. Depois da banca, como era de se esperar, fomos tomar um café à moda europeia. Em 2005 mudei-me para Brasília, aumentando a distância e diminuindo a frequência do contato, que ficou limitado a alguns poucos e-mails. Em fevereiro de 2012, ela me convidou para participar de um importante evento que estava organizando com seu grupo de pesquisa. Ao chegar lá, soube por sua melhor amiga, Germaine, que pouco tempo antes ela enfrentara seriíssimos problemas de saúde (um coágulo cerebral) e quase havia morrido. 

O evento, a Jornada de Estudos Interdisciplinares e Transnacionais “Circulação das Ideias e Reconfiguração dos Saberes”, trazia como eixo temático a “mundialização do conhecimento: circulação de conceitos e de paradigmas teórico-metodológicos; a virtualização dos saberes” (o blog ainda está no ar em: http://historiaintelectualufpr.blogspot.com/). As apresentações e debates foram de altíssimo nível, recuperando a importância da realização deste tipo de evento no Brasil. Aqui, quer pela pressão desmedida para a produção de indicadores de produtividade, quer por provincianismo, cada vez mais, os eventos científicos, mesmo que modestos, são criados com denominações ambiciosas (congresso, workshop internacional etc.). A simplicidade de Helenice jamais combinaria com algo pomposo. Para as jornadas vieram pesquisadores internacionais de primeira linha, que se revelaram também excelentes pessoas e ótimos companheiros de viagem. Nessas jornadas fiquei amigo de Márcia Consolim (que, assim como Helenice, é brasileira mas pensa em francês), Francisco Pinedo (da Universidad de Talca, com quem me encontrei, ainda esse ano, no Chile) e Patrick Bégrand (pesquisador francês, plenamente proficiente em espanhol), que me deu a horrível notícia, nesta sexta-feira cinzenta, do falecimento de nossa querida amiga.

Além de sua produção intelectual (o Lattes ainda está disponível online em http://lattes.cnpq.br/8329635075312925), o legado de Helenice é imenso, sobretudo a sua contribuição no desbravamento de um campo pouco explorado no Brasil: a história intelectual – que aborda, também, a compreensão da formação histórica das ideias de uma sociedade e os modos de agir oriundos de tal entendimento; ou seja, permite que analisemos as bases que inspiraram os atores históricos e as transformações sociais. Em um mundo acadêmico cada vez mais compartimentado, cartesianamente definido por normas, standarts e rankings (ISO, ABNT, Qualis etc.), é necessário que não se perca a compreensão de que os fenômenos são históricos e feitos por pessoas e que a produção intelectual de algumas delas tem efeitos absolutamente transformadores.

A Jornada me proporcionou, além dos bons frutos acadêmicos, além das ótimas amizades ali iniciadas, a única foto que tiramos juntos, logo após o jantar de encerramento do evento. Ficam comigo a lembrança da amiga querida e uma imensa saudade.

foto: Patrick Bégrand - 23/08/2012
Madrid, 10 de maio de 2013

4 comentários:

  1. Sou a Germaine.... se eu era a melhor amiga da Helenice, e ela a minha, nos eramos companheiras, e vivemos juntas uma vida de amor e de trocas pessoais e intelectuais...Foi uma vida rica e cheia... é uma perda imensa para mim como eu sei que ela é uma perda imensa para o mundo intelectual e académico.... Helenice era uma grande dama que aliava uma certa fragilidade, uma grande determinação e uma generosidade sem limite em compartilhar idéias....

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  2. Germaine,

    Pensei muito na sua perda e não sabia bem como expressar isso no texto. Eu só tenho a agradecer poder tê-las conhecido. Espero que possamos seguir em contato...

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  3. Respostas
    1. Caro Professor André,
      Quero agradecê-lo por este post e cumprimenta-lo por sua demonstração de amizade, admiração e respeito à Helenice (me permito mencioná-la pelo primeiro nome, sob o efeito da proximidade com que você me fez sentir em relação à pessoa humana dela), pois confesso que muitas vezes sinto como se nosso mundo acadêmico só existam relações intelectuais e manifestações eruditas e como se pessoas fossem sempre vistas como "autores" e mesmo como se o apreço seja sempre sob a visão da "obra" ou produção, onde quase nunca se vê a exacerbação do amor e do humanismo, tão intrínseco às pessoas comuns, entre as quais nunca aceitaria deixar de pertencer...
      Confesso a minha ignorância - até aqui – do muito que você revelou sobre essa pessoa, mineira como eu próprio o sou, e dotada de tantos atributos, provavelmente imperceptíveis a muitos, pois a simplicidade é um talento discreto de quem tem uma tarde regada a uma boa conversa em uma esquina do mundo, e isso é como um grande evento que embevece o coração de uma tão grande dose de amor e transcendência...
      Por isso, caro Professor, agradeço a oportunidade que você me deu de conhecer um pouco da sua amiga Helenice e de encher de ternura essa minha madrugada, transbordando minha mente e coração de admiração por ela e me fazendo querer e torcer para que os céus a acolham por toda dignidade de sua vida e que nós, acadêmicos, possamos aprender mais sobre ela, de seu trabalho e sua vida e a coloquemos no pódio verdadeiro das grandes almas que iluminam o saber de humanismo, de competência, de amor e de simplicidade.
      Grande abraço.

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