Ambiente virtual de debate metodológico em Ciência da Informação, pesquisa científica e produção social de conhecimento

sábado, 22 de novembro de 2014

A ciência da cIÊNCIA

Dizem que em 2666, durante a realização da Copa do Mundo de futebol nas Ilhas do Caribe, a cIÊNCIA foi de fato encontrada. 

Contrastando ao ambiente intensamente florescente dos trajes usuais das festas populares daquela região, a cIÊNCIA se vestia com um terno carvão de beleza estonteante, realçado pelo azul esmeralda reluzente de uma gravata clássica, comprada na movimentada Rua Cler, próxima à Torre Eiffel. Ao adentrar o ambiente pulsante, envolvido pela musicalidade dos corpos suados pelos movimentos da salsa, a cIÊNCIA chamou atenção: utilizava um IPhone 6, conectado a uma rádio de músicas clássicas que entoava a quinta sinfonia de Beethoven.

No instante em que todos os presentes voltaram-se para observar aquela figura memorável, a cIÊNCIA se sentou numa mesa isolada ao canto do recinto. Pediu um café preto, forte e sem açucar. Algumas crianças se aproximaram. A tal cIÊNCIA fazia várias tentativas de se comunicar, mesmo sem a correspondência dos nativos e turistas que visitavam o local. Tentava dizer entusiasmadamente que participara de todos os congressos científicos de sua área, mantendo impecavelmente o seu currículo Lattes de produção semanalmente atualizado. Arrotava números, afirmando que até aquele momento do ano já tinha participado de 70 encontros nacionais, 35 simpósios, 45 mesas redondas, 98 congressos, 52 defesas de teses e 23 eventos internacionais.

A mesma cIÊNCIA vociferava as razões em crer que no futuro o mundo não enfrentaria mais o problema da fome. Com a alarmante possibilidade tecnológica de incrementar a produção de bens e produtos de consumo, afirmava que todos os seres humanos teriam condições suficientementes seguras para realizar ao menos três refeições diariamente. Esbraveja adjetivos difamadores à falácia da teoria populacional malthusiana.

A inteligente cIÊNCIA tentava explicar a todos que a razão para os enormes contigentes populacionais das prisões do mundo inteiro estava diretamente relacionada à cor da pele dos homicidas. Afirmava categoricamente que os negros e pardos tinham maior propensão a participar mais ativamente do mundo do crime. Relatava que a venda de drogas, o aborto e a deliquência juvenil tinham como única correspondência a cor da pele dos indivíduos que compartilhavam essas experiências.

A sapiente cIÊNCIA chegou ao desvario de confrontar qualquer um presente que duvidasse da possibilidade dos grandes navegadores em alcançar as Índias, mesmo que para isso tivessem que fingir que descobririam uma outra terra que poderia se chamar Brazil. Para ela, não havia dúvida alguma de que todos os instrumentos desenvolvidos até então propiciariam a descoberta de novas terras por mares nunca d'antes navegados. E que batizaríamos os habitantes dessas terras de Índios, mesmo se também pudessem se chamar brasileiros.

A mesma cIÊNCIA tentava se fazer entender e dizer que esses "Índios" deveriam ser civilizados por brancos e europeus escolarizados. Que a civilização europeia traria todas as condições possíveis para dizimar as mazelas e as doenças daquela gente inocente; daqueles povos que não tinham condições razoáveis de utilizar o intelecto para realizar simples operações matemáticas. 

A cIÊNCIA se levantou e foi ao banheiro, gritando em alto e bom som: cogito ergo sum! cogito ergo sum! cogito ergo sum! Todos se entreolhavam e batiam palmas admirados.

No banheiro, a cIÊNCIA começou a esbravejar em voz alta aos presentes que já tínhamos todas as razões suficientes para entender que a menor partícula da matéria era indubitavelmente o átomo. E que o homem estaria muito próximo de descobrir a vida em outros planetas, porque assim poderíamos expandir os lucros cada vez mais volumosos das industrias de fast-food e mandar para espaços distantes os participantes de movimentos sociais que participassem das manifestações de rua contra a corrupção de governos cada vez mais transparentes. Adicionava ainda que as tecnologias verdes desenvolveriam a capacidade de compactuar intenso desenvolvimento econômico com ambientes de produção sustentáveis, respeitando o ritmo de funcionamento do meio ambiente.

Voltou do banheiro gargalhando pelo simples fato de que teríamos condições claras de prever todas as crises econômicas. Aliás, retificou o seu comentário escrevendo com um giz negro no quadro branco do bar o teorema que acabara de ganhar o Prêmio Nobel de Economia por demonstrar claramente o fato de que não teríamos mais crises econômicas no mundo, pois a inflação e a taxa de câmbio seriam fenômenos completamente controláveis por mercados livres dos países em desenvolvimento.

Diante de todos os aplausos por suas palavras incompreensíveis, a cIÊNCIA pediu a conta fazendo um gesto universal. Pagou o seu café enquanto todos a observavam estupefatos. Limpou o suor com um lenço branco importado que trazia no bolso de sua calça. Com todos de pé, aplaudindo, cantando e dançando a salsa que voltava a tocar após o silêncio ensurdecedor daquelas palavras inaudíveis, a cIÊNCIA correu pela porta dos fundos. Todos os presentes se espremeram à minúscula porta de saída. Algumas pessoas choravam emocionadas, machucando-se na tentativa de seguir a tal cIÊNCIA. 

Quando enfim conseguiram sair do ambiente, não conseguiram entender o que aconteceu...

P.S: A nossa personagem foi encontrada depois de algumas décadas numa manifestação de rua num país distante chamado Brasil. Naquele momento tão singular da história daquele país, milhares de cidadãos foram às ruas na esperança de conseguir melhores condições para lidar com as suas batalhas diárias. A famigerada cIÊNCIA foi flagrada comendo um sanduíche de presunto, sentada numa calçada, de bermuda, sem camisa e descalça. Segurava um cartaz com letras grandes e coloridas, recortadas do último jornal de domingo, formando a palavra ÉTICA!

* Rodrigo Ávila

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Formar ou deformar?

Márcio Zardo. "Formar é formar?"Instalação (2007).
Ao ver a imagem acima no Facebook de minha amiga (e mais nova integrante do GPAF) Isabela Frade, não pude deixar de pensar na árdua tarefa que vem sendo buscada neste blog há mais de 4 anos e meio: desenformar a cabeça de novos pesquisadores, de cientistas em construção; desenformar para que possam ousar pensar sem as tão típicas viseiras dos "manuais" """científicos""" (com aspas triplas); desenformar a postura corporal (que faz com que os glúteos fiquem quase sempre molecularmente imbricados a uma carteira discente) e ter o atrevimento de ousar. Ousar escrever, ousar publicar textos inciais (mesmo que em um blog), ousar apresentar-se publicamente (mesmo que no pátio da faculdade com um banner), ousar comentar ideias já consolidadas ao invés de apenas reproduzi-las etc. Enfim: ousar pensar. 

Do pouco que conheço em ciência sei que quanto mais assertivas são as afirmações, mais vulneráveis elas serão no futuro. Mesmo assim, de momento, há algumas "verdades" que parecem ser bastante razoáveis, como, por exemplo: (a) compreender que para haver inovação em ciência é necessário uma boa dose de imaginação; (b) saber que sem imaginação e criatividade não pode haver inovação científica; e, mais ainda (para completar o relação de afirmações com a mágica quantidade de três) (c): ter a certeza de que tais qualidades não podem ser "treinadas", "ensinadas" e/ou estandardizadas 

O problema é que nós, pesquisadores mais antigos (ainda em constante construção, espera-se), temos uma tendência ao comodismo intelectual que nos faz, cada vez mais, buscar repetir soluções criativas anteriores (se faz necessário um parêntesis aqui para diferenciar o amadurecimento da criatividade da repetição de fórmulas que, um dia, foram criativas). O ideal seria que nossa capacidade de imaginar, de ousar, de desenformar, nunca se perdesse e fosse, com o tempo, sempre mais criativa, porém, em geral, isso não se verifica. De qualquer modo, estamos todos fadados ao inexorável destino de ter que um dia (por opção, por comodismo, ou por fatalidade) deixar de ser criativos e parar de contribuir com a inovação científica (o que não significa, em hipótese alguma, parar de sermos "produtivos", e/ou de publicar e cada vez mais solidificar nossos currículos, ou nosso legado, no caso de fatalidades).

O mais assustador da instalação de Márcio Zardo é o nível de correspondência que ela tem com a realidade (se não fosse pelas fôrmas nas bases das carteiras não haveria qualquer metáfora na obra). O assustador não é testemunhar gente de mente velha defendendo que a "formação" científica se dá, justamente, pelo sentido literal do termo (com fôrmas); o que aterroriza não é ter um grupo de gente de mente velha agrupado em comitês e associações dedicando-se a estabelecer parâmetros milimétricos para cada fôrma mental; o que apavora não é ter que se defrontar com gente de mente velha gastando a parcela final de sua lucidez mental para fiscalizar o cumprimento das "diretrizes" estipuladas, como guardiães da "integridade" e "qualidade" científicas; o que realmente amedronta é ver gente jovem, de mente velha, negando a própria juventude, convertendo-se, sem nenhum questionamento, em fiéis escudeiros da ordem e da fôrma, reproduzindo fórmulas arcaicas e negando-se, veementemente, a sair da casca.

Para completar a provocação, tão bem iniciada por Márcio Zardo, sugiro que cada leitor responda "sim" ou "não" para as questões abaixo:
  1. Você ousaria colocar uma ilustração na capa de sua tese/dissertação?
  2. Você se atreveria a escrever sua tese/dissertação em fonte que não fosse recomendada pela a ABNT (por exemplo em "Bookman old stlye")?
  3. Você arriscaria entregar uma tese/dissertação sem um capítulo de "conclusão"?
  4. Você entregaria um artigo para publicação sem usar a ABNT para fazer as referência bibliográficas?
  5. Você acha possível que uma tese de doutorado não tenha um capítulo específico para a metodologia?
  6. Você acha que uma pesquisa científica pode não almejar a comprovação de hipóteses?
  7. Aliás, será que é possível ter uma pesquisa sem hipóteses?
  8. É possível fazer ciência sem prospecção sistemática de dados quantificáveis?
  9. É possível fazer ciência com fatos únicos, impossíveis de serem reproduzidos (e/ou simulados parcialmente) em laboratório?
  10. É cientificamente válido que um pesquisador seja absolutamente subjetivo na escolha de sua problemática de pesquisa, na eleição de sua base empírica e no tratamento desta, desde que os dados coletados sejam fieis a tais opções?
  • Se você respondeu apenas dois "sins", talvez seja o caso de se preparar para se aposentar por idade ou nem começar a carreira de pesquisador, apenas se afiliando à ABNT como sócio benemérito.
  • Se você se considera um pesquisador experiente e respondeu entre e dois e cinco "sins", talvez seja o caso de rever seus paradigmas científicos e tentar oxigenar suas ideias conversando com pesquisadores de outros ambientes institucionais e de outras áreas (sobretudo das Humanidades).
  • Se você se é um jovem pesquisador e respondeu entre e dois e cinco "sins", tome cuidado com suas companhias de mentes mais velhas; elas podem estar minando a sua juventude irremediavelmente.
  • Se você respondeu entre dois e quatro "nãos", não se desespere, ainda pode haver salvação, porém o esforço e a vontade de sair da zona de conforto são de sua exclusiva responsabilidade.
  • Se você respondeu menos do que dois "nãos", é somente uma questão de estar sempre atento, tomando cuidado onde pisa (e onde senta), já que há outras armadilhas muito mais perigosas dos que as "quase inocentes" fôrmas de bolo de Márcio Zardo, como poderia ser uma fôrma cheia de concreto de secagem rápida (que o deixaria eternamente refém da ABNT) ou mesmo uma armadilha de caçar ursos (que minaria, definitivamente, a sua capacidade de buscar novos horizontes, o condenando a escrever inúmeros artigos sobre a mesma coisa até o final dos tempos).
  • Lembre-se que quanto mais "sins" maior será a pena estabelecida pelo Supremo Tribunal da Inquisição e da Integridade da Ciência.
EM TEMPO: o blog recebeu um boa sugestão de Eduardo Tomanik e acrescenta uma nova questão:
"Você entende como válido um projeto científico que possa abrir possibilidades de que a teoria básica e a(s) hipótese(s) não seja(m) (re)confirmada(s)?"Obs: para não quebrar os cabalísticos números da pesquisa tradicional (1, 3, 5, 10, 50 ou 100) fica permitido ao leitor que escolher responder a questão extra se eximir de responder uma das 10 questões elencadas anteriormente, sem prejuízo da análise quantitativa do score de "sins". 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Tropeços na redação científica 5

Segundo o Novíssimo Dicionário Universal de Tropeços na Redação Científica:
  • citalogismo é o termo que designa, ao mesmo tempo, a) a crença de que é possível produzir um bom texto científico apenas colecionando e organizando afirmações já feitas por outros autores e b) as práticas derivadas desta crença, que consistem basicamente na elaboração de textos a partir do uso exclusivo da citalogia;
  • citalogia é a técnica de produção de textos pretensamente científicos, sem a contribuição de qualquer reflexão original produzida por seu autor ou autores.
Em outras palavras, um texto citalogístico é aquele que contém apenas um conjunto mais ou menos organizado de citações de outros autores e que normalmente apresenta, na parte das conclusões, já que é indispensável que ela exista, nada mais que um punhado de reafirmações (por vezes, mas nem sempre, disfarçadas) do conteúdo já apresentado.

O conhecimento científico é formado por um imenso conjunto de afirmações, consideradas como válidas ou corretas, de acordo com os critérios adotados em cada área, sobre cada tema ou fenômeno estudado por ela. O avanço desse conhecimento ocorre quando uma ou algumas daquelas afirmações são aperfeiçoadas, detalhadas ou mesmo substituídas por outras, aceitas como mais adequadas.

Tal como ocorre em todas as outras formas de conhecimentos humanos, os avanços das ciências nunca partem do nada, do zero, para a produção de algo absolutamente novo e original; eles são sempre um aprimoramento ou, às vezes, uma contraposição a algo que já se sabia ou que era aceito como válido.

Por isto é comum e adequado que os autores de textos científicos tomem como pontos de partida para suas reflexões ou investigações, afirmações já elaboradas por outros autores. O problema do citalogismo ocorre quando cientistas e seus discípulos começam a acreditar que textos científicos podem ser apenas coleções de afirmações já lançadas por outros autores e que permanecem tidas como válidas.

Talvez a origem desta prática tenha sido a crença de que os alunos das primeiras séries da graduação, quando participam das suas disciplinas básicas de iniciação, precisam familiarizar-se com as exigências da redação científica mas não possuem, ainda, os conhecimentos suficientes nem as condições intelectuais necessárias para a produção de reflexões próprias e originais. Neste caso, seria aceitável que fosse exigido deles apenas a elaboração de textos compostos por reflexões já elaboradas por outros autores. A citalogia seria justificada, neste caso, como um momento de aprendizagem.

Se esta crença existe, precisamos extirpá-la o quanto antes. Primeiro, por que não devemos nem precisamos menosprezar a capacidade dos alunos iniciantes; eles sabem pensar e devem ser incentivados, em todas as oportunidades, a fazê-lo. Também não podemos ignorar o efeito potencialmente nocivo daquela aceitação: quando solicitamos ao aluno que elabore o que chamamos de um texto científico e aceitamos que ele apresente o que é apenas uma colagem de afirmações alheias, estamos contribuindo para que ele acredite que a citalogia é uma técnica aceitável ou, pior ainda, que o citalogismo é a opção correta para a produção científica.

Como crença, o citalogismo é absurdo, já que equivale a supor a possibilidade da existência de um pensador que não precisa pensar. Como prática, tampouco merece continuar a ser adotado, porque seus resultados normalmente são muito parecidos com o monstro criado, na literatura, pelo Dr. Frankenstein; afinal, a pretensão de gerar uma nova criatura apenas unindo fragmentos de outras só poderia resultar em algo desagradável de ser visto e de pouca ou nenhuma utilidade.