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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Tropeços na Redação Científica 4

Estilos (ou a falta deles)

Nietsche, Marx e Sartre em estilo carnavalesco - Fotomontagem by Eatomanik 2014
Um bom texto sobre o marxismo ou que tome esta teoria como base tem que ser redigido em um estilo o mais próximo possível daquele utilizado por Karl Marx. Do mesmo modo, estudiosos de Heidegger devem ser capazes de escrever como ele; sartreanos precisam imitar o estilo de Sarte e freudianos devem nos fazer imaginar que seu texto foi escrito pelo próprio pai da psicanálise.

Espero que você tenha discordado de tudo o que está no parágrafo anterior. A meu ver, aquilo tudo é absurdo. Estamos de acordo?

Então, por que lemos tantos textos que parecem levar a sério afirmativas como aquelas?

Tenho me deparado com uma quantidade bem razoável de textos, normalmente (mas não exclusivamente) redigidos por pessoas que estão iniciando suas carreiras como autores e que parecem partir do princípio de que um texto, para ser científico e valioso, tem que ser escrito no mesmo estilo adotado pelos que são reconhecidos como cientistas valiosos.

Os autores que citei e muitos outros, que são importantes e que nos auxiliam a pensar, viveram e produziram em outros momentos, em outros espaços sociais e registraram seus pensamentos adotando estilos de redação e de argumentação que eram os correntes em suas épocas, nos idiomas que utilizaram e em seus grupos de referência intelectual.

Muitos tradutores procuram respeitar estes estilos e realizam grandes e louváveis esforços para transpô-los, junto com o conteúdo dos textos, para outros idiomas.

Na grande maioria dos casos, porém, não há qualquer razão para que tentemos fazer o mesmo. Vivemos em outro momento, em outro país, em contextos sociais nos quais as preocupações, os hábitos, os processos de interação social, os meios e até mesmo os objetivos mais imediatos da comunicação mudaram bastante, quando comparados com os vividos por aqueles autores. Nossas conversações cotidianas, verbais ou escritas, são diferentes. Por que nossos textos científicos devem permanecer iguais?

Arrisco uma hipótese: nós, professores, sem perceber, estamos transmitindo aos alunos a ideia de que o estilo de redação é um elemento-chave na determinação do valor ou da cientificidade de um texto. Afinal, não somos nós, direta ou indiretamente, que ensinamos a eles que um texto, para ser aceito como científico, tem que ter Introdução, Objetivos, Procedimentos, Resultados e Conclusões, separadinhos, devidamente identificados por subtítulos e enquadrados em espaços delimitados (e, muitas vezes, com tamanhos fixos)? Se a ordem das informações é um determinante da qualidade, por que não também o estilo? Assim, vamos enquadrando o pensamento dos novos cientistas.

Algumas características como precisão, clareza e concisão são altamente desejáveis em um texto científico, mas nenhuma delas é, isoladamente, determinante do valor do mesmo. Este valor depende, fundamentalmente, da qualidade e da originalidade das informações que o texto traz e das afirmações e reflexões que apresenta e desperta.

Isto pode ser feito, facilmente, no português nosso de cada dia, sem que precisemos cair nas gírias e na vulgarização das expressões nem abrir mão da qualidade, da precisão da clareza.

Ou vamos continuar supondo, como já fizeram Heidegger (a sério) e Caetano Veloso (será?), que “só é possível filosofar em alemão”?