Dizem que em 2666, durante a realização da Copa do Mundo de futebol nas Ilhas do Caribe, a cIÊNCIA foi de fato encontrada.
Contrastando ao ambiente intensamente florescente dos trajes usuais das festas populares daquela região, a cIÊNCIA se vestia com um terno carvão de beleza estonteante, realçado pelo azul esmeralda reluzente de uma gravata clássica, comprada na movimentada Rua Cler, próxima à Torre Eiffel. Ao adentrar o ambiente pulsante, envolvido pela musicalidade dos corpos suados pelos movimentos da salsa, a cIÊNCIA chamou atenção: utilizava um IPhone 6, conectado a uma rádio de músicas clássicas que entoava a quinta sinfonia de Beethoven.
No instante em que todos os presentes voltaram-se para observar aquela figura memorável, a cIÊNCIA se sentou numa mesa isolada ao canto do recinto. Pediu um café preto, forte e sem açucar. Algumas crianças se aproximaram. A tal cIÊNCIA fazia várias tentativas de se comunicar, mesmo sem a correspondência dos nativos e turistas que visitavam o local. Tentava dizer entusiasmadamente que participara de todos os congressos científicos de sua área, mantendo impecavelmente o seu currículo Lattes de produção semanalmente atualizado. Arrotava números, afirmando que até aquele momento do ano já tinha participado de 70 encontros nacionais, 35 simpósios, 45 mesas redondas, 98 congressos, 52 defesas de teses e 23 eventos internacionais.
A mesma cIÊNCIA vociferava as razões em crer que no futuro o mundo não enfrentaria mais o problema da fome. Com a alarmante possibilidade tecnológica de incrementar a produção de bens e produtos de consumo, afirmava que todos os seres humanos teriam condições suficientementes seguras para realizar ao menos três refeições diariamente. Esbraveja adjetivos difamadores à falácia da
teoria populacional malthusiana.
A inteligente cIÊNCIA tentava explicar a todos que a razão para os enormes contigentes populacionais das prisões do mundo inteiro estava diretamente relacionada à cor da pele dos homicidas. Afirmava categoricamente que os negros e pardos tinham maior propensão a participar mais ativamente do mundo do crime. Relatava que a venda de drogas, o aborto e a deliquência juvenil tinham como única correspondência a cor da pele dos indivíduos que compartilhavam essas experiências.
A sapiente cIÊNCIA chegou ao desvario de confrontar qualquer um presente que duvidasse da possibilidade dos grandes navegadores em alcançar as Índias, mesmo que para isso tivessem que fingir que descobririam uma outra terra que poderia se chamar Brazil. Para ela, não havia dúvida alguma de que todos os instrumentos desenvolvidos até então propiciariam a descoberta de novas terras por mares nunca d'antes navegados. E que batizaríamos os habitantes dessas terras de Índios, mesmo se também pudessem se chamar brasileiros.
A mesma cIÊNCIA tentava se fazer entender e dizer que esses "Índios" deveriam ser civilizados por brancos e europeus escolarizados. Que a civilização europeia traria todas as condições possíveis para dizimar as mazelas e as doenças daquela gente inocente; daqueles povos que não tinham condições razoáveis de utilizar o intelecto para realizar simples operações matemáticas.
A cIÊNCIA se levantou e foi ao banheiro, gritando em alto e bom som: cogito ergo sum! cogito ergo sum! cogito ergo sum! Todos se entreolhavam e batiam palmas admirados.
No banheiro, a cIÊNCIA começou a esbravejar em voz alta aos presentes que já tínhamos todas as razões suficientes para entender que a menor partícula da matéria era indubitavelmente o átomo. E que o homem estaria muito próximo de descobrir a vida em outros planetas, porque assim poderíamos expandir os lucros cada vez mais volumosos das industrias de fast-food e mandar para espaços distantes os participantes de movimentos sociais que participassem das manifestações de rua contra a corrupção de governos cada vez mais transparentes. Adicionava ainda que as tecnologias verdes desenvolveriam a capacidade de compactuar intenso desenvolvimento econômico com ambientes de produção sustentáveis, respeitando o ritmo de funcionamento do meio ambiente.
Voltou do banheiro gargalhando pelo simples fato de que teríamos condições claras de prever todas as crises econômicas. Aliás, retificou o seu comentário escrevendo com um giz negro no quadro branco do bar o teorema que acabara de ganhar o Prêmio Nobel de Economia por demonstrar claramente o fato de que não teríamos mais crises econômicas no mundo, pois a inflação e a taxa de câmbio seriam fenômenos completamente controláveis por mercados livres dos países em desenvolvimento.
Diante de todos os aplausos por suas palavras incompreensíveis, a cIÊNCIA pediu a conta fazendo um gesto universal. Pagou o seu café enquanto todos a observavam estupefatos. Limpou o suor com um lenço branco importado que trazia no bolso de sua calça. Com todos de pé, aplaudindo, cantando e dançando a salsa que voltava a tocar após o silêncio ensurdecedor daquelas palavras inaudíveis, a cIÊNCIA correu pela porta dos fundos. Todos os presentes se espremeram à minúscula porta de saída. Algumas pessoas choravam emocionadas, machucando-se na tentativa de seguir a tal cIÊNCIA.
Quando enfim conseguiram sair do ambiente, não conseguiram entender o que aconteceu...
P.S: A nossa personagem foi encontrada depois de algumas décadas numa manifestação de rua num país distante chamado Brasil. Naquele momento tão singular da história daquele país, milhares de cidadãos foram às ruas na esperança de conseguir melhores condições para lidar com as suas batalhas diárias. A famigerada cIÊNCIA foi flagrada comendo um sanduíche de presunto, sentada numa calçada, de bermuda, sem camisa e descalça. Segurava um cartaz com letras grandes e coloridas, recortadas do último jornal de domingo, formando a palavra ÉTICA!
* Rodrigo Ávila